segunda-feira, 21 de setembro de 2009
BIOLOGIA E FISIOLOGIA DO COMPORTAMENTO: A Síndrome de Korsakoff
No final do século passado, o médico russo Sergei S. Korsakoff descreveu uma síndrome que acompanhava certos casos de alcoolismo crónico cuja principal característica era a perda da memória. Esta síndrome designada desde então como Síndrome de Korsakoff resulta frequentemente de um historial severo de alcoolismo e é principalmente caracterizada por uma amnésia anterógrada e uma incapacidade para reter informação nova e pode revelar por vezes perturbações na memória retrógrada.
Esta doença resulta muitas vezes de um longo período de ingestão de álcool, isto por vários motivos: muitos alcoólicos têm maus hábitos alimentares, não ingerem os alimentos necessários ao organismo já que o álcool fornece por si só um alto valor de calorias. Assim sendo, os alcoólatras possuem muitas vezes défices de vitamina, nomeadamente de vitamina B1 ou tiamina. Para além disso, o álcool pode inflamar a parede do estômago e impedir que o corpo absorva as vitaminas que recebe, o álcool interfere também com o transporte gastrointestinal da vitamina B1. Estes factores vão provocar um défice de tiamina no organismo que vai dar origem às lesões cerebrais características desta doença.
A esta síndrome precede muitas vezes uma outra perturbação, designada por encefalopatia de Wernicke nesse caso a doença toma o nome de síndrome de Wernicke-Korsakoff. O sindroma de Wernicke-Korsakoff consiste em dois estádios separados mas que estão relacionados: os pacientes com desordem de Wernicke-Korsakoff apresentam uma progressão da doença de um estado súbito de confusão por vezes acompanhado por ilusões e confabulação (produção de histórias sobre as suas circunstâncias que são imprecisas ou mal colocadas no tempo). Este é referido como o estádio da encefalopatia de Wernicke e representa a fase penetrante da doença. No segundo estádio, o paciente torna-se mais estável e menos confuso e começa a entrar numa profunda e amnésia crónica, esta é a parte de Korsakoff do sindroma de Wernicke-Korsakoff
As lesões específicas desta síndrome afectam várias estruturas cerebrais. O diencéfalo é a zona mais afectada: observam-se lesões hemorrágicas nos núcleos anteriores e dorsomedial assim como nos corpos mamilares (núcleos do hipotálamo). Adicionalmente registam-se défices de volume no hipocampo e perdas significativas de matéria cinzenta no córtex orbitfrontal e mesotemporal assim como no tálamo e noutras estruturas do diencéfalo e também em grande parte dos ventrículos. Outras áreas lesionadas nestes pacientes incluem o cerebelo anterior, o bolbo raquidiano, também há evidências de atrofia do cortéx préfrontal dorsolateral. Observa-se igualmente uma patologia da matéria branca, indicando que os danos neste tecido podem ser os responsáveis pelas perturbações cognitivas e motoras próprias da síndrome de Korsakoff.
Todos estes danos nas estruturas cerebrais vão ter repercussões nas faculdades do indivíduo. A maior parte dos estudos feitos com pacientes de Korsakoff concentraram-se nas deficiências a nível da memória, pois esta é uma das funções mais afectadas.
A perturbação da memória que caracteriza esta doença inclui a deterioração da memória anterógrada provocando uma amnésia anterógrada (incapacidade em relembrar informação recentemente adquirida) ou na memória retrógrada (provocando amnésia retrógrada - incapacidade em relembrar acontecimentos remotos, informação que era familiar antes do inicio da doença), esta última mantém-se em muitos casos intacta, sendo a deficiência da memória anterógrada a mais evidente.
Butters (1984) realizou uma série de estudos de onde concluiu que a componente mais comum da perturbação de memória da síndrome de Korsakoff é uma codificação defeituosa da informação nova. O defeito na codificação da informação provoca uma impossibilidade do doente para aceder a muitas das experiências recentes ocorridas nos últimos dois ou três minutos, tendo assim pouco ou nenhum acesso a tarefas aprendidas nas quais participaram depois das lesões ocorrerem.
A evocação de informação presente na memória a curto termo não difere muito da dos indivíduos normais, mesmo com procedimentos de interferência.
Um aspecto da perturbação de memória desta síndrome é a falta de consideração das relações temporais: o indivíduo não usa essas relações para guiar e avaliar as suas respostas e expõe sequências de acontecimentos cronologicamente impossíveis, como por exemplo, existir televisão antes da segunda guerra mundial.
Outra das características marcantes desta doença que resulta da perturbação da memória é a confabulação, uma tendência do doente para preencher as falhas de memória que possui. O paciente acredita claramente naquilo que está a dizer, não existe uma tentativa óbvia de mentir. Kopelman (1987) faz uma distinção entre confabulação espontânea e provocada. Geralmente, o paciente que sofre da síndrome de Korsakoff irá utilizar a confabulação caso lhe perguntem algo sobre a sua memória, por exemplo, quando lhe fazem perguntas sobre uma história que acabou de ouvir. As confabulações espontâneas são mais raras e tendem a ser mais bizarras. Geralmente podem ser descritas como a produção engenhosa de memórias passadas. Esta falsificação da memória por parte do doente quando questionado acerca do passado para preencher lacunas produzidas pela amnésia envolve factos anteriores e verosímeis mas temporalmente desconexos. Por exemplo, se perguntarmos onde esteve na noite anterior, o indivíduo poderá responder que esteve a jogar cartas numa casa de amigos. Ele não esteve ali, mas era seu costume no passado ir até a casa desses amigo para jogar cartas.
Um aspecto interessante da perturbação de memória, característica da síndrome de Korsakoff, é a ruptura da capacidade de estar consciente das relações temporais e usá-las para guiar ou avaliar as suas respostas. Os pacientes tendem a mostrar-se indiferentes à cronologia dos acontecimentos ao relembrar eventos remotos, assim, expõem sequências impossíveis de acontecimentos, tais como haver televisão antes da segunda guerra mundial. Quando lhes é pedido que respondam a perguntas sobre acontecimentos passados, exprimem a primeira associação que lhes veio à cabeça mesmo que não seja uma resposta apropriada à pergunta que foi feita. Apesar de todas estas anomalias resultantes da amnésia, o doente não está consciente do seu problema.
Outras funções cognitivas são directamente afectadas pelas lesões das estruturas cerebrais, a atenção é uma delas: em tarefas realizadas para testar a atenção, os pacientes de Korsakoff apresentavam desempenhos fracos nalgumas tarefas e não eram susceptíveis de retomar actividades que tenham sido interrompidas. Além disso, no reconhecimento de estímulos visuais, estes doentes apresentavam tempos superiores aos dos sujeitos saudáveis (85 segundos para os doentes de Korsakoff, 25 segundos para os saudáveis). O reconhecimento de estímulos auditivos também se apresentava mais lento nos doentes.
Dado a natureza das estruturas afectadas nesta síndrome, é natural que os comportamentos emocionais também se mostrem alterados. O doente de Korsakoff revela uma apatia acentuada, que se manifesta na falta de interesse, curiosidade acerca do passado, presente e futuro, assim como uma falta de iniciativa. É igualmente possível que o doente seja atingido por uma insipidez emocional com capacidade para irritabilidade momentânea, raiva ou prazer que rapidamente desaparece quando o estímulo desaparece ou a conversa muda de tema. A inércia que se faz sentir nesta síndrome adicionada às profundas perturbações de memória fazem do doente de Korsakoff uma pessoa muito dependente, necessitada de supervisionamento por parte de outros.
Apesar de ser uma doença relativamente rara, é necessário estar atento a certos sinais que possam indicar a presença desta síndrome nos indivíduos, principalmente se estes possuem uma história de alcoolismo e apresentam dificuldades de memória, nestes casos é importante considerar a possibilidade de uma síndrome de Korsakoff.
Para diagnosticar o problema, é necessário a realização de exames mentais. Além disso, a tendência do doente para confabular deverá revelar se sofre ou não da síndrome, para isso, é verificada a retenção por parte do paciente de informação factual (perguntar por exemplo quem é o presidente), pode-se avaliar também a capacidade do indivíduo para aprender informação nova (repetindo uma série de números, ou relembrando o nome de três objectos que o paciente tivera que memorizar 10 minutos antes.)
Quanto ao prognóstico, convém salientar que 20% a 50% dos pacientes hospitalizados sofrendo da síndrome de Korsakoff vêem a falecer.
Embora o grau de ataxia, melhore na maioria dos casos com tratamento, metade dos doentes que sobrevivem continuam a ter permanentes dificuldades em andar.
A melhoria dos sintomas da síndrome de Korsakoff pode levar meses de reposição de tiamina. Além disso, os pacientes que desenvolveram a síndrome de Korsakoff revelam quase todos defeitos de memória o resto das suas vidas. Mesmo com tratamento de tiamina, os défices de memória são irreversíveis. No entanto, o progresso da doença de Korsakoff pode ser travado se a pessoa se abstiver totalmente de beber álcool, adoptar uma dieta saudável com um possível suplemento vitamínico e receber um tratamento com reposição de tiamina.
Todos estes procedimentos podem ser evitados se a pessoa tomar medidas de prevenção para evitar ser atingida pela doença. A prevenção depende da manutenção por parte de cada um de uma dieta suficiente em tiamina, ou complementando uma dieta inadequada com vitaminas. Uma das mais importantes formas de prevenção envolve sem dúvida tratar a dependência alcoólica (alcoolismo) subjacente à doença.
Concluindo, a síndrome de Korsakoff é uma doença neuropsicológica que se manifesta maioritariamente nos alcoólicos devido ao seu estilo e dieta pobre em alimentos nutritivos levando a défices vitamínicos que provocam lesões irreversíveis nas estruturas cerebrais. Estas lesões têm graves repercussões nomeadamente na memória, funções cognitivas e comportamentos emocionais. A amnésia é o traço mais característico desta síndrome que conjuntamente com as outras perturbações comportamentais torna o doente num indivíduo muito limitado e dependente.
Referências Bibliográficas:
Kolb, B. & Whishaw, I.Q. (2003 5ª edição). Fundamentals of Human Neuropsychology, NY: Worth Publishers
Fama, R., Marsh L., Sullivan E. V. (2003). Dissociation of remote anterograde memory impairment and neural correlates in alcoholic Korsakoff syndrome. Journal of the International Neuropsychological Society, 10 427-441
Bellach, A., Bonifacio, S. & Ramos, F. (1995, vol.1) Manual de psicopatologia. McGrow-Hill: Interamericana de España.
nº 23192 - Zara Vilhena Mesquita
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